quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Motim dos deuses

 "Os estrondos foram sucessivos. Um barulho ensurdecedor às quatro e meia da manhã. Nunca tinha ouvido nada igual. Imaginei que pudesse ser assim uma zona de guerra. Algo incomum acontecia e quebrava o silêncio monótono de um domingo no centro de uma cidade universitária. Ninguém na rua, até os cachorros da vizinhança guardavam os latidos, entre sonolentos e preguiçosos. Não fosse um lampejo de razão, arriscaria dizer que era o fim dos tempos. Disparei a mentalizar perguntas que não combinavam comigo: a terra está se abrindo? O fim é queimarmos no fogo do inferno? Mas o inferno não é a terra? De novo zona de guerra, dale bomba atômica. E o pânico geral. 

Tudo isso eu pensava com a cabeça embaixo do cobertor. Queria levantar e conferir se minha colega de apartamento ouvia as mesmas explosões e sentia o mesmo pavor que eu.  Mas nem o síndico, sujeito bem informado, havia feito qualquer movimento de pôr para fora o nariz. Será uma orgia de fogos de artifício? Aliás, nem se todas as lojas estourassem seu estoque ao mesmo tempo o barulho teria a mesma solidez, dando a entender que vinha do céu. Se eu não tive coragem de levantar para verificar a origem do som perturbador, posso dizer que poucos tiveram. Confesso que não me lembro como terminei a noite. O fato é que faltava pouco para amanhecer e eu tinha que me recompor. Toquei os moveis e a mim mesma para saber se ainda éramos concretos. E o dia raiava absolutamente indiferente.

"O movimento na rua estava menor, eu reparei. Era preciso verificar o hospital, mas não havia tempo, era eu quem abria a sala. Com mesuras, liguei o ar condicionado, calcei as luvas, sentei na cadeira de sempre com meu copo de água sagrado. Aos poucos, outras estagiárias chegaram. Ligamos o rádio. Não perguntei, elas nada disseram. A rotina colocava seu peso morto em cima da experiência recente. Na volta para casa decidi. Respirei fundo, toquei a campainha. A voz veio do interior mal decorado: - Boa noite, seu Geraldo! – Boa noite, querida! O síndico falou com um sorriso difícil. Disse que a desordem da madrugada era tradição da cidade. Todo ano, naquele mesmo mês, os soldados do Tiro de Guerra se espalhavam pelos pontos cardeais para, em honra aos fundadores da vila, lançar balas de canhão em honra à bravura dos feitos primordiais. Como? Em quatro anos nunca soube disso. – Sim, minha filha, todo ano! Consenti. Mandei lembranças à sua senhora, virei as costas e entrei no meu quarto. Ponderei se ele mentia ou se era evento verídico. Preferi o mistério de antes. Eu estava certa, nem seu Geraldo nem ninguém estava interessado em saber de verdade a causa de todo aquele motim dos deuses."

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