terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Menina da chuva



Por um par de dias, uma vez por mês
É como eu me sinto:
Uma criança com os pés descalços, no meio da rua (qualquer)
mal iluminada, com os cabelos escorridos 
em água de chuva abundante que cai e cai e cai
Sozinha a sentir a torrente de uma mistura de lágrimas, suor e angústia
Que desce do extremo mais longe do chão do seu corpo
Até o chão embaixo dos seus pés
Mistura de líquidos incertos de sua origem
que vagueia por um caminho torto rua abaixo
E eu (ela, criança menina) na chuva torrencial, imóvel e quase esquelética.
Assim sou eu todo mês, por um par de dias
Dentro de mim (silêncio e opressão de chuva)
Fora de mim é trovão 
A criança menina dos cabelos escorridos
(cansada do ensopado da roupa e da sensação de torpor)
Grita em som agudo:
- Grita! Grita de novo!
E eu na demência de querer me resignar
- Abra as pernas! Grita!
Ela quer que eu triunfe uma vez na vida na esperança de sentir-se seca da água
inesgotável uma vez na vida.
Não sou surda, escuto a menina chorar
Me aqueço, tomo um analgésico e ignoro
É besteira!
E ela se cala por mais um ciclo de espera
Até o novo ciclo imenso de dor de existência.


quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Um livro se lê e se abraça




Quase todos os dias leio. Sento e leio. Faço apenas isso por minutos, se possível horas. Quando o tempo não me permite ler, eu toco, folheio, mantenho um livro próximo, como uma espécie de amuleto ou uma apólice de seguro. 

Um livro, meus livros (os que comprei ou ganhei ou herdei ou que simplesmente vieram parar em minhas mãos e ficaram, e mesmo os que perdi) eu os vejo como objetos que me ajudam a despistar a sensação de desprendimento. Há qualquer coisa estável em um livro que reabilita a curto, médio ou prolongado prazo nossa visão "perdida" de mundo. 

Ler é na maioria das vezes um ato de introspecção que provoca ao mesmo tempo um absoluto envergar para dentro e nesse universo interior o despertar para fora, para o outro, para o abismo da humanidade. Não cultuo livros, não os vejo como objetos de adoração, não ponho livros em altar e nem em estantes de mogno inacessíveis. 

Com os meus livros eu tenho uma relação incestuosa de me misturar a eles, de às vezes esconjurá-los, de reatar o contato, de odiá-los em sua intimidante magnitude, de muito frequentemente querer a eles me unir num lance eterno de sorte.