domingo, 29 de janeiro de 2012

Recordações de Maria Helena.

Maria Helena envelheceu. Ela vivia há cerca de 23 anos numa rua antiga, ainda hoje igualzinha, nas proximidades da magnífica "Pedra dos dois olhos", no histórico bairro chamado de Jucutuquara. Disso eu me lembro bem. São antigas também as duas fotografias que carrego comigo. Eu sei que o tom amarelado dessas revelações denunciam a passagem dos anos, também evidenciadas na decadência das casas, nos sulcos da pele, no embranquecimento dos cabelos, na postura arquejada e em toda juventude ocultada pelo peso de todas as idades. Falo da minha juventude e da juventude dos ex-vizinhos de Maria Helena. E falo mais: as coisas, as pessoas, tudo envelhece, de acordo com os planos divinos, imagino, em honra e dignidade ao passado. Por mim, tudo bem.

Eu queria mesmo era reconstituir uma amizade antiga em homenagem a alguns momentos do passado. Eu queria era reentrelaçar dois destinos. Providenciar que não se perdessem mais. Pois, diferente do que se costuma pensar, não são as distâncias que amornam relacionamentos, são os dias que se sucedem distraídos, em eterno adiamento, na esperança de que viveremos para sempre ou que teremos tempo, um dia, para sermos atenciosos, para esquecermos de ligar para o gás, para a companhia de energia, para a central de reclamações, para a farmácia 24 horas, para então nos concentrarmos nas pessoas, nas saudades, enfim, na agenda de telefone guardada em alguma gaveta da nossa mobília. É engraçado dizer isso em plena era da impessoalidade, dos perfis virtuais, dos e-mails, dos sites de relacionamentos. Assumo que estou de saco cheio de toda essa parafernália. Eu não preciso de GPS, se me perder eu pergunto o caminho oras. Por que não?

Eu fui em busca de Maria Helena utilizando de todos os recursos, diria, ultrapassados, superados, em desuso. Bati de porta em porta. Conversei com antigos. Andei de um lugar a outro, seguindo os rastros de Maria Helena. Ia simplesmente guiada pela confiança de que a encontraria. Ainda que a cidade não fosse mais a mesma. Ainda que duas décadas de intensa urbanização embaralhassem minhas lembranças e me tirassem o sentido de rumo. Não me intimidei com as mudanças, nem com a possibilidade de Maria Helena ter deixado de existir, nem tampouco com as grandes chances de minha amiga ter ido morar em outra cidade, quiça em outro Estado. Não me era indiferente a probabilidade de Maria Helena ter me esquecido. Talvez não desejasse mais me ver. Não dá para perguntar a alguém que não se vê há anos e de quem não se sabe o paradeiro, se ela quer nos rever. Não dá para agendar uma visita sem antes confrontar a pessoa com sua presença, totalmente longínqua desde 23 anos atrás e de repente tão imediata, a poucos centímetros de distância. É um risco, é uma aposta. Eu estava sujeita tanto a alegria quanto a decepção do reencontro.

É angustiante procurar uma lembrança, sabia? Reforçada apenas pela imagem de um retrato. Talvez não nos reconheçamos numa primeira mirada, é normal. No entanto, suponho que mesmo de idade avançada continue bela. Receio que se encontre machucada pela vida, apesar do espelho possivelmente não lhe negar o conforto da aparência. Eu ensaiei muitos diálogos. Conversei horas a fio com Maria Helena. Tinha a expectativa de que ela voltasse a me confiar os seus segredos. Acho que estava querendo demais. Um café, uma conversa de recordações, um breve passeio e nossos laços estariam novamente reatados. Não duvido, dependendo das circunstâncias, que se oferecesse a me levar de volta até meu atual endereço, longe, muito longe, só para conhecer a vida que levo, só para garantir que virá até mim caso eu não a procure novamente. Faz parte da sua natureza querer garantias. Lembro-me de um episódio engraçadíssimo, quando foi surpreendida por um assaltante, que ficou ainda mais estarrecido do que ela quando ouviu sua vítima gritar a plenos pulmões, irritadíssima, que lhe daria tudo que tinha desde que prometesse, garantisse que nunca mais a roubaria de novo.

Ela queria se afiançar de tudo. Tanto que da última vez que nos vimos, que nos despedimos, ela me fez jurar que trocaríamos correspondências até o dia em que não precisássemos mais dos serviços dos Correios, porque poderíamos falar pessoalmente. Não preciso nem dizer que meu juramento ficou no Espírito Santo, na verdade sequer saiu da rodoviária. A ciranda em que a vida me envolveu me fez quebrar a promessa. Nunca mais falei com Maria Helena. Não escrevi carta nenhuma. Depois de me lembrar disso, acho que seria de bom tom começar me desculpando pela ausência, pelo silêncio, pelo descumprimento de uma declaração tão séria. Fiquei distraída. Meu telefone não parava de tocar, meu filho não parava de adoecer, minha carreira não podia esperar. Ela entenderia? Não sei, ainda não encontrei Maria Helena. Soube que se casou novamente, que realmente continua bonita, que sorri com frequência porque seu ex-marido parou de a importunar. Soube que ainda mora em Vitória, que sua filha casou com um engenheiro e que sobe o Convento da Penha uma vez por ano. Deixei um bilhete com uma antiga vizinha, dona Eli, exímia costureira, para que se a visse pelas redondezas a entregasse em meu nome e a garantisse que estive ali, que a procurei e que ainda sinto saudade.

sábado, 21 de janeiro de 2012

"O contato com o passado...

... difícil de definir, é o adentrar-se em uma esfera alheia a nós, uma das muitas formas de que o homem dispõe para sair de si mesmo, para viver a verdade... O objeto sobre o qual se recai esta vivência não são as figuras humanas em sua contextura individual, não é a vida humana, nem são os pensamentos humanos o que acreditamos estar vivendo. O que o espírito forma ou experimenta aqui pode apenas se chamar imagem. Quando se reveste de uma forma, esta é sempre flutuante e vaga: uma intuição tanto de ruas e de casas, de campos, de sons e de cores como de homens que se movem e são movidos"

Johan Huizinga. El concepto de historía.


Fragmentos de um romance que ninguém escreveu...

“Era já tarde da noite e eu na espreita da soleira de casa à espera de meu pai. Ele sempre se atrasava e, insistentemente, eu mantinha minha preocupação a cada ausência sua. Naquela interminável espera amanheceu e me dei conta de que ele não chegaria a tempo de tomar o café (tomava apenas o café preto preparado por mim). Embora já tivesse iniciado os primeiros afazeres de casa e me distraísse, às vezes, com meus irmãos, volta e meia olhava pela janela e observava, concentrada, o caminho que levava até nosso pequeno pedaço de terra. Mamãe, em sua pequenez aguda e sua voz firme, ordenou que eu escrevesse em um papel de pão guardado na prateleira de madeira, acima do fogão à lenha, os alimentos que deveriam ser comprados, mais tarde, na venda a um quilômetro de casa. Enquanto me desprendia mais uma vez de minha atenção relutante no horizonte, aguardando os passos de retorno do meu pai, organizava em minhas letras exageradamente redondas, os produtos de maior necessidade, deixando por último aqueles que poderiam esperar até a próxima semana. Eu tinha um sorriso sempre pronto a acalmar os ânimos de todos em nosso lar (simples casinha, mas que eu me esforçava em torná-la agradável), naquela longa manhã, não pude, no entanto, esconder meu nervosismo pela prolongada permanência de meu pai na cidade. – Menina, pior que seu pai, não sabe ter paciência... Dizia minha mãe com a cabeça baixa colhendo algumas hortelãs no quintal."





"Nunca havia presenciado uma briga sequer entre meus pais, não me questionava o motivo do acordo pleno, da paz permanente, a comunicação escassa era talvez fórmula por eles planejada, por ser desnecessária a troca de palavras, já que o amor se expressava mesmo no silêncio, ou, o que era mais provável (doendo em mim a indiferença), era o vazio tenro que se estendia entre os dois, gelado e opaco, criando essa atmosfera de apaziguamento, mas que na verdade não era, senão, na profundeza do que eles haviam se tornado um para o outro, o retrato do próprio abismo que os separava, a má sorte de se encontrarem como estranhos vivendo sob o mesmo teto e compartilhando a mesma linhagem de filhos. No presente de meus oito anos essa relação incompreensível entre meu pai e minha mãe pouca diferença fazia, muitas vezes eu me beneficiava dessa distância entre os dois, sendo meus outros irmãos muito apegados a minha mãe, eu tinha tempo e espaço para ser a preferida de meu pai e ele sempre me lembrava quem eu era: - Minha flor amarelinha do riacho, sabe bem que te amo, tome essas moedas e compre algumas balinhas, como te faz falta um pouco de açúcar nos dentes... Como me deixava feliz esse aconchego de meu pai. Quando me desentendia em casa com minha mãe, final de tarde eu esperava meu pai na porteira, com ar de quem nada quer, e ele me “surpreendia” com um presente da cidade, ora era um broche, ora uma correntinha para prender nos cabelos, ora um brinquedo qualquer. Na pior das desavenças ganhei o melhor dos presentes."

Poema de Clarice.

Tanta coisa deveríamos ter feito juntas.
Pensar em você durante todo o dia não cumpre a promessa do que não fizemos.
Me remete aos dias em que estivemos tão próximas, que ainda sinto seu cheiro.
A minha infância, a minha vida até aqui.
No fundo, não há ausência.
Em mim, impregnado, seu toque, seu beijo, seu carinho.
Nos meus ouvidos não cansam de se repetir todas as palavras de afeto.
Ainda tenho dificuldade em dormir. Difícil fechar os olhos quando sei que sua casa
está vazia, sem luz, apagada de você.
Sua janela, sua varanda, seus afazeres diários...
Suas roupas, gravadas na minha memória, como se ainda pudesse vesti-las e tomar
o café da manhã. Seus objetos, seu capricho, tudo tão bem cuidado. Dias e dias
planejando mudanças, reparos. Me sinto perdida, sim, sozinha. Ainda não encontrei
outro lugar onde minha alma se acalmasse e se sentisse tão bem, a vontade, como se
ali tivesse nascido e dali partisse um dia.
Sua casa verde de janelas brancas já conheceu outras cores, outras datas, outros ladrilhos.
Seu quarto, meu canto. A verdade é que nós duas estamos por toda parte.
Pergunto no meio da noite: "Quando vou te ver de novo?"... Não é preciso dizer que fica
a Saudade. Chorar continua custando uma lágrima
Dia, depois outro dia e já fazem três anos.
Seu tempero, suas hortelãs, seus sonhos interrompidos.
Suas reformas, maneira de também se renovar.
Vó, carrego agora uma infinita falta de você, uma saudade que me diz, tão sem jeito, que
não existe chance de ir embora. Que definitivamente é hora de ficar.