Eu queria mesmo era reconstituir uma amizade antiga em homenagem a alguns momentos do passado. Eu queria era reentrelaçar dois destinos. Providenciar que não se perdessem mais. Pois, diferente do que se costuma pensar, não são as distâncias que amornam relacionamentos, são os dias que se sucedem distraídos, em eterno adiamento, na esperança de que viveremos para sempre ou que teremos tempo, um dia, para sermos atenciosos, para esquecermos de ligar para o gás, para a companhia de energia, para a central de reclamações, para a farmácia 24 horas, para então nos concentrarmos nas pessoas, nas saudades, enfim, na agenda de telefone guardada em alguma gaveta da nossa mobília. É engraçado dizer isso em plena era da impessoalidade, dos perfis virtuais, dos e-mails, dos sites de relacionamentos. Assumo que estou de saco cheio de toda essa parafernália. Eu não preciso de GPS, se me perder eu pergunto o caminho oras. Por que não?
Eu fui em busca de Maria Helena utilizando de todos os recursos, diria, ultrapassados, superados, em desuso. Bati de porta em porta. Conversei com antigos. Andei de um lugar a outro, seguindo os rastros de Maria Helena. Ia simplesmente guiada pela confiança de que a encontraria. Ainda que a cidade não fosse mais a mesma. Ainda que duas décadas de intensa urbanização embaralhassem minhas lembranças e me tirassem o sentido de rumo. Não me intimidei com as mudanças, nem com a possibilidade de Maria Helena ter deixado de existir, nem tampouco com as grandes chances de minha amiga ter ido morar em outra cidade, quiça em outro Estado. Não me era indiferente a probabilidade de Maria Helena ter me esquecido. Talvez não desejasse mais me ver. Não dá para perguntar a alguém que não se vê há anos e de quem não se sabe o paradeiro, se ela quer nos rever. Não dá para agendar uma visita sem antes confrontar a pessoa com sua presença, totalmente longínqua desde 23 anos atrás e de repente tão imediata, a poucos centímetros de distância. É um risco, é uma aposta. Eu estava sujeita tanto a alegria quanto a decepção do reencontro.
É angustiante procurar uma lembrança, sabia? Reforçada apenas pela imagem de um retrato. Talvez não nos reconheçamos numa primeira mirada, é normal. No entanto, suponho que mesmo de idade avançada continue bela. Receio que se encontre machucada pela vida, apesar do espelho possivelmente não lhe negar o conforto da aparência. Eu ensaiei muitos diálogos. Conversei horas a fio com Maria Helena. Tinha a expectativa de que ela voltasse a me confiar os seus segredos. Acho que estava querendo demais. Um café, uma conversa de recordações, um breve passeio e nossos laços estariam novamente reatados. Não duvido, dependendo das circunstâncias, que se oferecesse a me levar de volta até meu atual endereço, longe, muito longe, só para conhecer a vida que levo, só para garantir que virá até mim caso eu não a procure novamente. Faz parte da sua natureza querer garantias. Lembro-me de um episódio engraçadíssimo, quando foi surpreendida por um assaltante, que ficou ainda mais estarrecido do que ela quando ouviu sua vítima gritar a plenos pulmões, irritadíssima, que lhe daria tudo que tinha desde que prometesse, garantisse que nunca mais a roubaria de novo.
Ela queria se afiançar de tudo. Tanto que da última vez que nos vimos, que nos despedimos, ela me fez jurar que trocaríamos correspondências até o dia em que não precisássemos mais dos serviços dos Correios, porque poderíamos falar pessoalmente. Não preciso nem dizer que meu juramento ficou no Espírito Santo, na verdade sequer saiu da rodoviária. A ciranda em que a vida me envolveu me fez quebrar a promessa. Nunca mais falei com Maria Helena. Não escrevi carta nenhuma. Depois de me lembrar disso, acho que seria de bom tom começar me desculpando pela ausência, pelo silêncio, pelo descumprimento de uma declaração tão séria. Fiquei distraída. Meu telefone não parava de tocar, meu filho não parava de adoecer, minha carreira não podia esperar. Ela entenderia? Não sei, ainda não encontrei Maria Helena. Soube que se casou novamente, que realmente continua bonita, que sorri com frequência porque seu ex-marido parou de a importunar. Soube que ainda mora em Vitória, que sua filha casou com um engenheiro e que sobe o Convento da Penha uma vez por ano. Deixei um bilhete com uma antiga vizinha, dona Eli, exímia costureira, para que se a visse pelas redondezas a entregasse em meu nome e a garantisse que estive ali, que a procurei e que ainda sinto saudade.
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