Episódio I: O segredo da Caixa d'água.
Nesta casa aniversariei meus primeiros anos de vida. Foi no entorno desta casa que fiz meus primeiros amigos. Foi no quintal desta casa que brinquei com meus primeiros brinquedos. Foi na descida acelerada do topo à base do morro desta casa, numa tentativa desesperada de alcançar os braços de meu vô Manuel, que ganhei meu primeiro e doloroso machucado, e que pela primeira vez experimentei o gosto do sangue, na curiosidade de absorver de volta para dentro do corpo aquele líquido insistente, num vermelho que destoava de todas as cores já vistas. Sorvi escondida aquele gosto de ferrugem. Por um bom tempo meus machucados foram motivo de sangria para minha língua herege. Foi também nesta casa que tive meu primeiro namorado, Ruvinho. E foi finalmente nesta casa que experimentei pela primeira vez o medo, o maravilhamento do desconhecido, a curiosidade pelo desconhecido, a força atrativa de uma história inventada para paralisar os músculos de uma criança.
As imensas lagartixas que enfeitavam o muro de nossa casa, limítrofe ao portão que nos separava do universo mítico do morro da Caixa d'água, com sua pequena floresta remanescente da Mata Atlântica, eram apenas ensaios de criaturas em nada comparáveis ao monstro aquático que vivia nas profundezas enigmáticas de algum poço, de alguma enorme lagoa no cume inacessível do morro. Acordar e ir para o sol acompanhar o rito de aquecimento daqueles corpos rígidos e verdes era como reviver a cada dia um sentimento ancestral de pertencimento a uma natureza primitiva e eterna. Comecei naquele instante, tenho quase certeza, a tomar gosto pelo silêncio. Eu aprendia sem querer, com a calma e a aptidão sedentária e hipnótica daqueles bichanos observadores, que eu também servia, mesmo como gente, muito mais para ouvir do que para falar. Esqueço às vezes desse sábio e longínquo aprendizado, mas os lagartos continuam sendo a visão mais aproximada que tenho de um transe espiritual, enxergam o invisível e compartilham com os de sua espécie o raro dom de povoar simultaneamente dois mundos.
No contato extemporâneo e diurno com aqueles répteis ia crescendo em mim a figura imaginária da criatura poderosa que habitava o reino vizinho. A proximidade do animal, com toda a periculosidade anunciada de sua existência, alimentava meus pesadelos e forçava-me a duvidar. Algumas vezes acreditei ouvir o ronco noturno daquele bicho feroz, mas solitário. Alimentava, totalmente fora de razão, contra todas as recomendações, saltar o portão e subir o caminho arvorado para comprovar a imensidão do seu tamanho, a mistura camuflável de suas cores, o quão afiado eram seus dentes, o volume de seu bramido. Criança nenhuma nas redondezas se aventuraria a cruzar a fronteira segura da nossa rua para desbravar o lado de lá, fantástico e tenebroso. Eu não desafiava ninguém, porque temia recuar na bravura no último instante. Eu disse que duvidava, em alguns momentos eu duvidei, porque o silêncio absurdo e cortante daquelas paragens, reforçado pela ausência de qualquer relato de morte ou ataque, fazia-me descrente na possibilidade de um gigante guardar a vida proibida do portão, apesar do enorme cadeado simbolizar algo mais do que medidas de segurança pura e simplesmente. Afinal de contas, roubar frutinhas silvestres era muito mais divertido quando envolvia o quintal de algum sujeito rabugento, com latidos de cachorro e adrenalina da correria zombeteira e assustada de tantos pés descalços e bocas sujas do pequeno delito.
Eu não entendia porque tanta precaução, e minha cabeça oscilava entre a dúvida e a certeza de que alguma coisa lá em cima valia a pena ser resguardada e protegida. Minha maior inquietação era conseguir finalmente descobrir, caso fosse real, se era dos humanos que a criatura era protegida ou se era da criatura que nós humanos éramos poupados. Morrer não passava pela minha cabeça, nem qualquer chance de um ferimento grave, eu só cogitava ganhar todos os louros da travessura, porque seria eu a única possuidora do segredo e a única que poderia revelá-lo. Isso, no entanto, não me bastou para colocar em prática os muitos planos de fuga traçados por mim, mentalmente, para averiguar os mistérios do Morro da Caixa d'água. Num dia fui pega de surpresa quando, ao ir a escola, colaram em meu caderno um bilhete solicitando autorização dos pais para visitar a represa da Cesan, empresa abastecedora de água da Cidade. A surpresa veio mesmo ao descobrir, pela felicidade da minha mãe, que ela mesma poderia acompanhar o passeio, e garantir a integridade física da filha, já que éramos vizinhas da Cesan. Agora, até mesmo o nome do Morro fazia sentido. Era lá que ficava não só a enorme Caixa d'água do município, como também o jacaré colossal, conforme narravam os adultos.
Sussurros se confundiam com o barulho das cigarras. Nós, crianças acostumadas a pisar nos paralelepípedos das ruas, no auge de nossos 5 ou 6 anos, sentíamos calafrios e excitação permanente naquele chão de terra batida e vegetação nas margens pela expectativa de, enfim, vasculhar as profundezas do grande poço. De modo algum eu recuaria. Rodeada de adultos - algum deveria ter uma espingarda escondida - nada poderia me fazer mal. Era preciso reconhecer, ou os adultos eram muito corajosos ou eles haviam mentido. Eles conversavam e sorriam e ignoravam com total descaramento os risinhos nervosos e as piadas infantis acerca do monstro da Caixa D'água. Nenhuma reprimenda das que ouvimos naquela manhã remetia aos cuidados que deveríamos ter para garantir a vida diante do perigoso selvagem de dentes afiados. Eu comecei a suspeitar seriamente de que as histórias fantásticas não passavam de zombaria dos adultos para se divertirem com nossas caras inocentes de pequenos assustados. Há certo prazer em torturar as crianças com histórias escabrosas, sobrenaturais, exageradas, eu sei disso porque já pratiquei esta paródia da vida adulta. Acontece que também havia implícita uma maestria de argumentos para proteger os mais aguçados de curiosidade em ficar se embrenhando pelas margens da Cidade, rodeada de rios e árvores que poderiam nos fazer desaparecer, para sempre. O medo era um recurso fácil de controle, de quem vivia aterrado pela possibilidade da perda. As crianças são menos prudentes, ao menos eu era.
Escalada a subida até o grande poço, que mais se assemelhava a uma lagoa profunda com uma inusitada queda d'água artificial, eu logo escapuli da multidão de estudantes do primeiro grau para verificar o esconderijo do imponente jacaré. Um cínico funcionário, vendo a peraltice acontecer embaixo do seu nariz, logo advertiu que a água era perigosa, eu poderia ser filtrada e distribuída em líquido pelos canos da Cidade se eu não me juntasse novamente ao grupo de escolares. Fiquei por um instante tímida para, em seguida, romper com o elo de subordinação, e perguntei: - afinal de contas, Seu Guardião da Água, o que é menos doloroso: morrer afogada ou devorada? Ele imediatamente entendeu a relação do meu comentário com a mitologia infantil que o lugar despertava. Então, respondeu: - doloroso mesmo é viver sem histórias. Eu não digo que morrer seja bom em nenhuma circunstância, mas a aventura de encarar frente a frente um jacaré do tamanho de um bonde vale mais do que os segundos de inconsciência de qualquer afogamento. Vai se divertir, enquanto eu alimento o grande réptil que habita nossa represa.
Eu não entendi muita coisa do que disse, e também não me lembro se foram essas as palavras exatas. Mas a confidência valeu o encontro. O funcionário perdeu o cinismo e sorriu pela boa ação. Corri contente, com cara de quem sabia mais do que os outros. E os outros perceberam, tanto que preferiram esconder a ansiedade que sentiam pela chegada do dia seguinte, quando nos reuniríamos nas redes de balanço do pátio da escola. Era lá o palco das nossas narrativas sobre qualquer acontecimento ou feito extraordinário. De recreio em recreio eu alimentava o espetáculo de cada imaginação, hora em que me tornava mais incandescente que as estrelas em noite clara.
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