terça-feira, 19 de março de 2013

Ave Maria.

O sino da igreja tocou no exato minuto em que o dia completou suas 18 horas. Lembro-me de estar, nesse mesmo instante, acolhida do frio das tardes de maio na casa de minha avó. As cigarras completavam o anúncio dos sinos e pareciam orientadas e acostumadas a iniciar o bater de suas asas logo que o ritual religioso se completasse, assumindo como sua a tarefa de continuar os prenúncios da noite que avançava. Eu acompanhava muito muda e atenta os barulhos que, para a maioria, passava imperceptível, por força do hábito.

Era quase sagrado. Chegava novamente a hora de apoiar-se no encosto da varanda para observar e comentar a vida dos passantes ou só para respirar um pouco de ar fresco. De vez em quando o latido de um cachorro assustado predizia um possível atropelamento. Na esquina da rua principal da cidade era comum o trânsito de caminhões e carros que só estavam ali de passagem, levando rostos desconhecidos e todo tipo de gente que dos moradores daquele lugar nada sabiam, ignorando sem pudor também o nome de batismo daquele caminho, margeado de casas simples, descoloridas. Talvez a preocupação de minha avó em sempre retingir a sua casa venha daí, desse saber misterioso colhido pelos anos de observação, pelas vezes que encarou os viajantes e calculou quantos deles julgavam ser aquele um lugar de miséria, esquecido por Deus. Ela coloria a sua casa, seja por esse ou outro motivo, e de repente tudo para mim adquiria novo aspecto e eu deixava momentaneamente de querer ser como aqueles viajantes.

Algumas comadres que passavam pela calçada se detinham às vezes para conversar, contando casos recentes, sempre interrompidos por suas exclamações de um "graças a Deus". E Deus voltava a contribuir para o equilíbrio do dia. Os solitários fechavam suas janelas cedo, seguidos pelos pais de família. Minha avó também fazia a casa toda dormir para quem a via do exterior. Dentro, um ritmo quente e compassado por seus chinelos de dedo me dizia que daqui a pouco o cheiro da sua comida voltaria a povoar as minhas narinas, de modo a impregnar não só aquele momento fugidio como toda a minha vida. Volta e meia algum bicho se infiltrava pela janela e meu pânico a fazia rir gostosamente. Com naturalidade, ela convivia com as lagartixas detrás da estante da televisão, com as pererecas que visitavam o banheiro e com os calangos do quintal. A contragosto matava um para me acalmar. Nada disso espantava a minha vontade de ficar ali. Eu ficaria ali para sempre, mesmo que eu não soubesse disso naquela altura.

Deitar para dormir nunca era definitivo, pois a claridade dos postes, o barulho dos caminhões e os alívios urinários da madrugada faziam viva a casa de minha avó, mesmo no silêncio, mesmo na hora mais extrema da madrugada. Foi a primeira ideia cortante que me invadiu quando soube que não a veria mais. Pensei na inevitabilidade de tudo que é humano e na também inadiável morte da casa de minha avó, que ficaria de luzes apagadas, sem fogo que a aquecesse, sem água que a refrescasse, sem plantas que a alegrasse, sem vassoura que a varresse e sem as chinelas de dedo que a acariciasse.